Completa-se hoje meio século sobre um dia em que o Faial sentiu na pele o amargo da desgraça

Há 50 anos, a 20 de novembro de 1971, os faialenses foram apanhados de surpresa por duas notícias dramáticas, no mesmo dia: a deflagração de incêndios na igreja dos Cedros, pela madrugada e na fábrica Primavera, no Pasteleiro, ao fim da tarde.
Antes de fechar a edição desse sábado fatídico o vespertino Correio da Horta ainda foi a tempo de noticiar que “o desaparecimento da Igreja dos Cedros emocionou a ilha inteira”.
Apesar desta irreparável perda, a que se juntaram os enormes prejuízos na fábrica Primavera, o acontecimento mais infausto foi a morte de um bombeiro do serviço de combate a incêndios do Aeroporto da Horta, num acidente de viação ocorrido durante a deslocação para auxílio dos bombeiros voluntários que combatiam as chamas do estabelecimento fabril.
O autor deste texto recorda-se da madrugada de 20 de novembro de 1971 por causa do aflitivo toque da sereia dos bombeiros e, pouco depois, da passagem em alvoroço pela Rua de São João das viaturas de combate a incêndios com destino ao norte da ilha.
De acordo com informação obtida da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários do Faial (AHBVF) “cerca das 3 horas da madrugada a cidade foi alvoroçada com o alarme de fogo”. A mesma fonte relata a “insistência da sirene dos Bombeiros”, o que “fazia prever que se tratava de uma ocorrência grande”.
O segundo alarme, para o incêndio da fábrica Primavera, foi dado por volta das 17 horas, consoante os dados recolhidos junto da AHBVF, quando as pessoas ainda não se tinham refeito da tragédia da madrugada desse dia.
Não é difícil imaginar o impacto destes dois sinistros no estado de alma da população faialense, como, aliás, referiu o Correio da Horta, atrás citado.
Mesmo sem dispor dos meios de comunicação que hoje estão ao alcance da generalidade das pessoas, os faialenses ter-se-ão apercebido rapidamente do sucedido e vivido momentos de profunda consternação.
Os próprios bombeiros, para além da excecionalidade e da exigência destas duas intervenções, enfrentaram a perda de um camarada e um inesperado contratempo, pois uma viatura TPP (Transporte de Pessoal Pesado), a ainda hoje existente, já sem funções operacionais, Chevrolet, popularmente conhecida como “carro da malta”, avariou nas curvas da Ribeirinha quando se dirigia aos Cedros.
FOGO POSTO
João Luís de Oliveira Pereira, 79 anos de idade, um dos poucos “soldados da paz” desse tempo e que aderira aos bombeiros precisamente em 1971, recorda a grandiosidade do fogo, em cujo combate participou e a impotência para evitar as consequências da voracidade das chamas, que apenas pouparam as duas sacristias do templo e a torre sineira.
Este antigo bombeiro, que considera o incêndio da igreja dos Cedros como um dos maiores que enfrentou, explica que, dada a distância do quartel e o local do sinistro, as possibilidades de obter êxito no salvamento de alguns bens eram muito reduzidas.
O carismático e experientíssimo ajudante de comando dos bombeiros faialenses, João Porto, já falecido, lembrava que o alarme de um incêndio dado de madrugada significava, à partida, que poucas hipóteses existiriam de combater as chamas com sucesso. Durante a noite, com as pessoas a dormir, é natural que se apercebam tardiamente do fogo, sobretudo em locais ou edifícios não frequentados em período noturno.
Incêndios em igrejas terão muitas vezes na sua origem descuidos relacionados com velas acesas deixadas sem vigilância. O autor do texto, que foi acólito na paróquia da Matriz da Horta, lembra-se das chamadas de atenção do pároco, José de Freitas Fortuna, quando se tratava dos procedimentos próprios do final das cerimónias religiosas, recomendando, sempre, que houvesse certeza absoluta de que não subsistiam sinais de lume nos círios apagados.
Cristina Silveira, autora do livro, em dois volumes, “Cedros: do Povoamento à Actualidade” (2017), dedica um capítulo ao incêndio da igreja de Santa Bárbara, deixando no ar a interrogação “tragédia ou vingança?”
Esta jornalista cedrense, que foi redatora de O Telégrafo e tem várias obras publicadas, ouviu testemunhos de paroquianos sobre o incêndio para o livro “Cedros: do Povoamento à Actualidade” e aponta fogo posto como a hipótese mais plausível na destruição do templo, que terá sido “regado” com “gasolina ou gasóleo”, por um indivíduo a quem o pároco alegadamente recusou o batismo de um familiar, desvalorizando a possibilidade de a causa ser uma vela acesa cuja chama alastrasse, em abono do que apresenta uma interpretação para se afastar desse caminho, relacionada com observações no local realizadas após o sucedido.
UM CIGARRO
O antigo bombeiro João Luís não esqueceu o dia 20 de novembro de 1971, em que, após a extinção de um incêndio muito trabalhoso, teve que acudir a outro não menos perigoso, na fábrica Primavera, conhecida pela apreciada “laranjada do Raimundo Lemos”.
Ao contrário do caso da igreja dos Cedros, neste, as circunstâncias do acidente que conduziu à destruição pelo fogo da fábrica situada no Pasteleiro (nas proximidades da antiga fábrica do peixe) são conhecidas.
A firma Raimundo Lemos, Lda, dona da Primavera, tinha como sócios Raimundo Rodrigues Garcia de Lemos (fundador), José Moniz Bettencourt e João Borges.
É precisamente João Pereira Borges, empresário responsável por importante atividade comercial e industrial na ilha do Faial, que explica, com “profunda mágoa”, o sucedido.
“O incêndio foi despoletado numa das secções de fabrico de licores, então em laboração e onde um dos operários de serviço, que havia acabado de entornar uma embalagem de álcool no piso, vê entrar outro colega que, não se tendo apercebido que o piso estava molhado, resolve acender um cigarro para o que acionou o seu isqueiro e logo a sua chama provocou uma explosão e consequentemente deflagrou o incêndio”, descreve João Pereira Borges, revelando apurada memória.
“Porque se tratava de uma situação de elevado risco, dada a proximidade de outras dependências com matérias-primas altamente combustíveis, nomeadamente alguns bidons de álcool, garrafas de gás carbónico, para os refrigerantes, etc, do que demos conhecimento aos bombeiros, estes pediram ajuda aos bombeiros do aeroporto”, conta este empresário.
ACIDENTE MORTAL
No combate a este incêndio, para além dos bombeiros voluntários, encontrava-se presente o chefe José Chaves Baptista, dos bombeiros do aeroporto, segundo os dados que nos foram fornecidos pela AHBVF.
Terá sido por seu intermédio que foi solicitada a presença de um reforço de pessoal e equipamento do serviço de combate a incêndios do Aeroporto da Horta.
“Os bombeiros rapidamente entraram em ação, o fogo parecia estar vivo e perto dele espreita o grande perigo, havia um bidão de álcool que rebenta, outros três mil litros de álcool permanecem bem perto e o incêndio alastra”, segundo os documentos da AHBVF.
Infelizmente, o socorro do aeroporto não se verificou, os bombeiros voluntários tiveram que resolver o problema sozinhos, mas, pior do que isso, foi a viatura que partira de Castelo Branco para a cidade não ter chegado ao destino porque a meio caminho, na zona das Eiras, onde existiu um silo da firma Martins & Rebelo, descontrolou-se ao descrever uma curva e contracurva, ficando voltada e imobilizada.
O carro de combate transportava quatro bombeiros, um dos quais faleceu, enquanto os outros foram assistidos no hospital. Tratava-se de elementos do Aeroporto de Santa Maria a prestar serviço na Horta.
O jornal O Telégrafo, no relato do acidente, falou da eventualidade do rebentamento de um pneu dianteiro da viatura, mas a voz popular também diz que o tanque de água deste pronto-socorro não estaria atestado, o que terá provocado desequilíbrio.
Várias pessoas acudiram ao local e, de acordo com o Correio da Horta, “seis homens apenas” endireitaram a enorme viatura “com a sua força e a força da aflição”, socorrendo os ocupantes.
O desastre aconteceu a quatro dias da passagem do terceiro mês sobre a inauguração do Aeroporto da Horta (24 de agosto de 1971), quando ainda fumegavam os restos da igreja de Santa Bárbara, que o padre Júlio da Rosa encontrou, conforme escreveu n’ O Telégrafo, com “as paredes de chagas abertas, as colunas lívidas a esbracejar para o céu num grito de angústia”. A igreja foi reconstruída, não sem que o modelo escolhido ficasse isento de polémica, como assinala Cristina Silveira no livro já citado. A fábrica, por sua vez, ainda sobreviveu mais 25 primaveras, com atividades envolvendo massas alimentícias; torrefação de cafés, cevada e chicória; confeitos, amêndoas e marmelada; licores e fabrico de vassouras, entre outros produtos, de que se destaca, afirma João Pereira Borges, “a água tónica, que contribuiu para celebrizar o gin tónico do Peter”. |X|