Muita água no fundo da Caldeira do Faial levanta questões sobre a natureza das nossas ilhas, em que os vulcões ditam as suas regras

A abundância de água no fundo da Caldeira do Faial, testemunhada e fotografada nos últimos dias por algumas pessoas que se deslocaram à borda da cratera do principal vulcão da ilha e que ESCREVI.BLOG referiu em publicações anteriores, tem dado lugar a alguns comentários, nomeadamente na rede social do Facebook.
A notícia remexeu na memória e, por exemplo, veio à baila um antigo vendedor do “peixinho da Caldeira”, chamado António Fialho, que José Jorge Garcia recordou, lembrando-o também como vendedor de “ice creams”.
Os episódios de vida são como peças de dominó. As recordações vão-se alinhando dentro da cabeça e quando a primeira cai, as outras, em catadupa, não param de nos devolver o passado.
Por isso, foram várias as lembranças que apareceram nas caixas de comentário do Facebook.
José Jorge Garcia, antigo tipógrafo do Correio da Horta, escreveu que a figura popular que ficou conhecida como “peixinho da Caldeira” respondia pelo nome de António Fialho, “nascido e criado junto às Bicas dos Flamengos, ao lado da sede da Filarmónica”, que, além de vender o “peixinho da Caldeira”, “percorria a cidade com o seu carro de gelados, que curava todas as doenças”.
A conversa virtual à volta deste assunto serviu para esclarecer que o “peixinho da Caldeira” não servia para consumo, pois a sua utilidade relacionava-se com a limpeza das cisternas: “Lembro-me de passar na minha casa um senhor a apregoar ‘peixinho da Caldeira’, mas não era para cozinhar, era para colocar nas cisternas, para limpar a água”, explicou a professora Conceição Duarte, corroborada pela faialense emigrada no Brasil, Conceição Flores, que acompanha pela Internet os acontecimentos sua terra. “O meu pai – sublinhou – costumava comprar ‘peixinhos da Caldeira’ para colocar na nossa cisterna a fim de manter a água limpa”.
José Castro acrescentou que o “peixinho da Caldeira” era “de dimensões pequenas, tipo carapau”. Este feteirense, a propósito de António Fialho, completou a informação de José Jorge Garcia, retomando “o pregão do gelado, ‘icecream americano!” José Castro assegura que ainda se lembra da chegada do vendedor ao Largo das Grotas aos domingos, pois “era uma folia”.
Outro faialense, há anos radicado no continente, entrou no desfiar de recordações para acrescentar que se recorda “perfeitamente desse Senhor do Flamengos que vendia, nas ruas da Cidade, não só os ‘peixinhos da Caldeira’ (de pequenas dimensões e sem fins culinários), como os ‘icecreams'”.
Eduardo Manuel Camacho puxou pela memória, pormenorizando que “os ‘peixinhos’, na maioria das vezes, eram para colocar nas cisternas, ou seja, nos reservatórios de águas pluviais das habitações que, em muitas situações, não tinham água canalizada (por exemplo: no Pasteleiro, no sentido da Feteira, até aos anos setenta, a água canalizada só chegava até à Canada dos Arrendamentos) e ainda em pequenos aquários”.
“Lembro-me de ter ido ao fundo da Caldeira, sendo que a última vez foi antes da erupção do Vulcão dos Capelinhos, salvo erro em junho desse ano, na expectativa de apanhar uns ‘peixinhos'”, contou Eduardo Camacho.
“BURACO” NA CALDEIRA
Outra questão levantada nas redes sociais sobre o tema da lagoa da Caldeira, foi a hipótese de o sismo de 23 de novembro de 1973 ter contribuído para a permeabilidade do fundo da cratera, como já acontecera em 1958 com erupção vulcânica dos Capelinhos.
“Dizia-se que o grande sismo de 23 de novembro, que destruiu grande parte das freguesias do Pico, tinha rompido ou rachado o fundo da Caldeira”, informou o picoense Albino Terra Garcia, entusiasta da observação de fenómenos naturais, acrescentando que se “falou de um ‘buraco’ que existiria na Caldeira através do qual a água era naturalmente drenada para o exterior”.
A ideia do ‘buraco’ disseminou-se entre a população e era frequente especular-se sobre o assunto.
Sobre estas possibilidades, o geólogo faialense Carlos Faria afirmou a ESCREVI.BLOG que não possui dados que as confirmem ou desmintam, mas adiantou que “o sismo de 1973 pode perfeitamente ter reaberto mais fissuras geradas em 1958, além de que, havendo falhas geológicas que atravessam a estrutura, estas possam ter sofrido deslocamentos, que por norma são acompanhados por fissuras associadas”.
“Não há nenhum buraco específico, a drenagem faz-se por infiltração vertical e escoamento radial das formações litológicas que formam o cone encimado pela Caldeira”, assegurou Carlos Faria. “Os furos nos Flamengos, Cedros, Pedro Miguel e Castelo Branco podem receber água que se infiltrou da Caldeira”, aventou o geólogo.
Interrogado sobre se o vulcão anterior ao dos Capelinhos, o do Cabeço do Fogo, em 1672, terá provocado alterações na Caldeira, Carlos Faria acha que “não é provável”. E explicou: “A última enorme erupção da Caldeira foi perto do tempo da fundação de Portugal, de lá para cá houve uma erupção que não pertence ao vulcão principal, que originou aquele cabeço lá em baixo, enquanto o vulcão da Praia do Norte foi em 1672, o que é muito pouco tempo para ter havido impermeabilização suficiente para grandes lagoas”
Carlos Faria lembrou que “a explosão de 1958 também não é do vulcão da Caldeira, é uma explosão freática pelo aquecimento de água subterrânea na sequência dos Capelinhos”.
Sabe-se que se o vulcão da Caldeira “rebentar”, usando uma expressão comum aos faialenses, as consequências serão significativas, nomeadamente para a segurança da população. Porém, Carlos Faria, numa atitude pedagógica e tranquilizadora, acentuou que “os vulcões dão sempre sinais de retoma e não vivemos no tempo de Pompeia, mas, nesta zona do arquipélago, este é o nosso Vesúvio e o Pico o nosso Etna, com erupções menos frequentes que o vulcão da Sicília”.
A terminar, o geólogo lembrou que os vulcões nos Açores são monitorizados. |X|